Maneiras trágicas de matar uma mulher: o obituário da Folha e o epílogo d’O conto da aia.

Elvio Cotrim
6 min readNov 8, 2021

--

Muita gente conhece O conto da aia. Tanto a série quanto o livro são fenômeno popular. O livro segue se vendendo bem e o sucesso da série é sem igual. Desde que estreou na Hulu, mulheres vestidas num simulacro do uniforme das aias são presença constante nos movimentos de contestação pelos direitos da mulheres, especialmente no que diz respeito aos direitos reprodutivos. Pouco conhecido, mas bastante importante para o conceito interno da obra, é o epílogo “Notas históricas sobre O conto da aia”. No epílogo, situado no ano de 2195, duzentos anos portanto desde o fim do regime de Gilead, o leitor é informado que aquilo que veio a ser intitulado O conto da aia na verdade se trata de uma edição transcrita de relatos esparsos de uma mulher cuja identidade nada se sabe — Offred — cuja organização foi feita por James Pieixoto, professor universitário especialista em Estudos Gileadianos. A narrativa de Offred fora encontrada registrada em trinta fitas cassetes durante escavações arqueológicas e o que se assiste no epílogo é uma conferência universitária em que o professor apresenta à plateia o resultado de sua pesquisa, cujo título é “Problemas de autenticação com relação a O conto da aia.”. O que se segue, então, é algo que familiar a qualquer pessoa com alguma familiaridade com conferências universitárias: o pesquisador, seguindo o tão aclamado rigor acadêmico, ignora todo o impressionante documento que tem em mãos: os relatos de uma vítima de um regime totalitário. Sistematicamente, ao longo das quinze páginas do epílogo referentes à palestra de Pieixoto, ele: a) passa uma cantada na professora que o apresenta no colóquio; b) faz impropérios misóginos e trocadilhos sexuais sobre Offred e sobre os movimentos de resistência femininos de Gilead; c) aponta para a possível dimensão fraudulenta daquele relato, visto que editores pagavam grandes fortunas em relatos mentirosos que tiravam proveito do sensacionalismo em torno daquela história; d) exorta a plateia a não julgar o regime e sim a entender “as pressões de ordem demográfica” pelas quais passavam a sociedade da época, que conhecia “índices de natalidade caucasianos em queda livre”, obrigando seus governantes a adotar “serviços de reprodução humana.”; finalmente e) tecendo elogios aos arquitetos intelectuais de Gilead, os quais ele nomeia e para quem dedica especial atenção. Tudo isso diante de uma muito bem-educada plateia que o aplaude eventualmente. Mas, finalmente, o que isso tem a ver com o obituário asqueroso publicado pela Folha de São Paulo hoje?

Quem tem mais de trinta e cinco anos vai se lembrar daquele fenômeno comum de comprar fitas cassetes virgens para gravar músicas tocadas na rádio. Às vezes, a fita era reaproveitada, de modo que o resultado final sempre deixava marcas dos processos de gravação anteriores. Todo toca-fitas por mais modesto que fosse possuía uma botão de gravação. Pois é justamente as circunstâncias em que o relato de Offred é encontrado: sua fala foi gravada por cima de antigas gravações de Elvis Presley, Boy George, Twisted Sisters e Mantovani. Há um sutil tom de crítica do professor-editor quando relata esse fato, durante sua fala no epílogo. O motivo é claro: aquela seleção musical não era erudita. Com essa curta passagem, Atwood mostra a relação conflituosa do mundo acadêmico com as canções ditas populares. E para mim, os ecos desse desdém com a seleta musical reverberaram no obituário da cantora Marília Mendonça que a Folha teve a coragem de publicar: porque sempre alguém precisa ter a CORAGEM de (re)firmar o pacto misógino e aporofóbico que já tinham pipocados nas redes sociais horas depois do falecimento da cantora. Arautos da erudição se apressaram em se divorciar do luto coletivo com seus “nunca tinha ouvido falar dessa cantora!”. Os socialistas com tangas de ouro acorrem: “Morreu uma capitalista!” Houve quem dissesse que o feminismo de Marília era de ocasião — e aqui também se aproximam muitas críticas à Atwood, que se vê acusada frequentemente, incluindo no meio acadêmico, de construir uma personagem pouco combativa. Os elementos presentes no obituário são muito alinhados à conferência do professor Pieixoto, que, por sua vez, possuem também, ressonâncias com a realidade acadêmica: a) comentários sobre a aparência feminina fora de contexto — realmente em que dimensão a alegada batalha contra o peso é elemento relevante em um obituário?; b) o uso do termo SUBGÊNERO, do seu campo de trabalho — no caso de feminejo — posto entre aspas, é claro. No epílogo, o professor Pieixoto se recusa categoricamente em nomear O conto da aia de documento, pois, para ele, trata-se apenas de objeto, pois não se enquadra nos critérios de enquadramento oficial da historiografia. É objeto, portanto, é SUBgênero. A mesma lógica se produziu no texto, em que o referencial absoluto é, claro, masculino. Aqui o autor, aparentemente um especialista no assunto, parece ignorar a história pregressa das cantoras e compositoras sertanejas — Helena Meirelles, Inezita Barroso, as Irmãs Galvão — agraciadas pela lembrança do autor — , Nalva Aguiar, e as Irmãs Castro — a canção Beijinho Doce, revivida pelas personagens Donatella e Flora na novela A favorita era um sucesso na voz da dupla; c) o autor dispõe dos limitados e preciosos caracteres que o jornal lhe concede para, sistematicamente, compará-la a outros homens. Sua morte é comparada às de Gabriel Diniz e Cristiano Araújo — ainda que seja para destacar sua superioridade diante dos citados. O autor não para por aí: até os números impressionantes que Marília alcançara no Spotify precisam ser atravessados pela régua masculina — comparados aos dos Beatles. Aqui eu realmente não sei se é a questão é mais o machismo ou o vira-latismo brasileiro que precisa sempre do referencial europeu para se orientar. Da lista dos que lamentaram sua morte, certamente o destaque é dado pela nota do ex-presidente Lula. Mais além, cito a impressionante: “Honra máxima na música brasileira, Marília recebeu duas citações de Caetano Veloso em seu mais recente disco.” O que essa frase quer dizer? De repente, Marília Mendonça, de soberana entronada no título vai perdendo sua coroa ao longo do texto. Em dado momento ela é relegada ao campesinato, “proletária da canção.”. A questão central do meu argumento nem é tanto a de rechaçar as comparações nem de ignorar os momentos em que o autor fala de sua carreira e cita alguns trechos de suas canções mais importantes. É de apresentar dois sintomas que a academia apresenta, ora como chiste, ora como homenagem, como aqui é o caso: é a incapacidade de se entender uma mulher como sujeito absoluto de sua própria existência. Alguém aqui imaginaria um obituário de um grande cantor ou compositor posto em perspectiva com a carreira de seus pares femininos? Por que o autor resolveu gastar tantas linhas para cercar Marília desses homens se, como o próprio autor menciona, ela possui carreira e biografia longas e exitosas o suficiente para preencher um obituário digno da mulher que ela foi? Por que é tão difícil para nós, homens, prestar homenagem a uma mulher? Por que é tão difícil para nós, acadêmicos, falar daquilo que é popular?

Há várias maneiras de matar uma mulher. Inclusive, há várias maneiras de matar uma mulher já morta. Offred e Marília Mendonça dão testemunho de seus amores, suas paixões, suas falhas e suas dores. Falaram de si com verdade, às vezes eloquentemente, às vezes aos soluços e mesmo através de desafinos, afinal a vida mesma é toda ela absolutamente fora do tom. Faz parte do anedotário popular que Chico Buarque não é a voz das mais dotadas do país. Entretanto, insisto na pergunta, alguém em sã consciência faria um obituário de Chico em que constasse a frase: “Nunca foi um excelente cantor?” Então, o que fazer diante desse texto, que não passa de um grande passeio erudito no jardim da masculinidade, assim como o texto do professor Pieixoto? Para mim a resposta é clara: voltemos às histórias contadas por essas mulheres. Ler o epílogo do Conto da aia é um convite ao retorno à narrativa de Offred. Não precisamos de nenhum acadêmico para pautar quem foi Marília Mendonça, porque ela é dotada de voz e fala por si. Marília não encontrou seu espaço na academia– estou certo que isso é preciso mudar, mas é assunto para outra hora. Após ler o obituário de Marília, liguei o som na maior altura dentro de casa, dancei e cantei junto. Cheguei até a abrir uma latinha de cerveja, bater forte no peito e na parede “Amante não tem lar” — para mim o maior registro em vídeo da fruição de sua canção provoca em fãs. O que fazer depois disso, então? Como vamos cumprir nosso luto — ainda que perturbado pelo patrulhamento ostensivo das emoções alheias que não poupa seus dedos apontados? Vamos transmitir às nossas crianças e às crianças das nossas crianças seu repertório, contar as histórias incríveis da Marília, de Offred para que no futuro elas cantem e dancem ao som da Patroa sobre os túmulos dos canalhas.

--

--